São Paulo, sexta, 20 de junho de 1997.
MISTÉRIO
Criatura desconhecida sugou sangue e retirou órgãos de pelo menos um animal.
FABIANA ALCÂNTARA
Um misterioso animal apelidado de chupa-cabra está provocando uma onda de pânico na região de Campinas (99 km de SP).
Segundo moradores de dez cidades da região ouvidos pela Folha, o suposto animal ataca, suga o sangue e arranca os órgãos de cabras, galinhas e bois. Os ataques acontecem durante a noite.
Os depoimentos revelam várias contradições nas características físicas do chupa-cabra: algumas pessoas que dizem ter visto os ataques do animal afirmam que a criatura tem feições de um extraterrestre — cor verde, cabeça grande e baixa estatura. Outros definem o animal como um simples canguru.
Todas as testemunhas concordam em pelo menos um fato: o animal arranca o cérebro, vísceras, olhos e coração das vítimas com uma precisão "cirúrgica". Pesquisas estão ocorrendo nas áreas da biologia, nenhum profissional deu respostas. Entretanto, ufólogos afirmam que, entre 30 animais encontrados mortos na região, apenas meia dúzia tem características de um ataque extraterrestre.
A ocorrência mais notável foi registrada há 15 dias em Rafard (170 km de São Paulo) — uma ovelha foi encontrada com perfurações na cabeça e no pescoço. A perfuração, no entanto, é caracterizada por três presas em formato de triângulo invertido.
"Já confirmamos que as outras mortes foram causadas por felinos ou por caçadores, pois encontramos cápsulas de bala nos corpos dos animais", disse.
Eduardo afirmou que vai pedir ajuda da Polícia Militar e da Defesa Civil na próxima semana para procurar o suposto animal em uma mata de Rafard. Segundo um PM de Rafard, que não quis se identificar, existem mais casos na cidade.
"As pessoas têm medo e acabam enterrando os animais mortos pela criatura sem avisar ninguém", disse. Algumas pessoas estão mudando seus hábitos devido ao suposto alienígena.
"Deixei de andar durante a noite na rua porque tenho medo de ser atacada"
"Estou com medo desse bicho. Parece que a coisa é feia mesmo"
"O chupa-cabra perseguiu um amigo meu que estava de camionete a 150 km/h"
"Fui para o pasto atrás desse bicho, mas não vi nada. Se eu o achasse, ele ia virar o chupa-balas"
Esses foram apenas alguns dos depoimentos que recebemos por pessoas que preferiram não serem identificadas.
O vinhedo era pequeno demais para a fortuna, mas grande demais para abandonar.
Nelson o mantinha com o zelo de quem sabe que a terra, mesmo que ingrata, ainda oferece companhia. Todos os dias, há mais de quarenta anos, cuidava da casinha e das parreiras com a familiaridade da infância e o carinho do lar. Podava os galhos, colhia os cachos, arava a terra. Ninguém visitava. Nem mesmo vinham buscar as safras.
Ninguém se lembrava que ele existia.
Exceto um... algo.
De manhã, antes de qualquer coisa, o velho Nelson descia até o porão com um balde de sangue. Quando mais moço, ele próprio dessangrava porcos, agora comprava do açougue do igualmente velho Gerson através de um moleque de entregas que vinha de bicicleta vez ou outra.
O que dividia sua vida ruralmente comum do sinistro era uma porta de ferro reforçada. Barras atravessadas e correntes fechando os puxadores com cadeados. Rangia como um bicho velho.
O cheiro lá embaixo era úmido e doce como carne podre.
A criatura o esperava num canto. Era menor do que os boatos contavam. Tinha olhos vermelhos injetados de preto, uma fuça de cachorro desdentado e espinhos sensíveis decorando a espinha dorsal sem pelo.
Com o tempo, a coisa parou de tentar escapar. Parecia entender a rotina, se encaixar nela como um cachorro velho. Para ambos, o mundo era melhor ali dentro do que lá fora.
O homem colocava o balde no chão. Levava o segundo pra cima — vazio, vermelho e ferroso. Não falava mais com o companheiro.
Depois do porão, lavava as mãos com vinagre e abria a varanda para o dia de labuta.
Foi sensível a tomar desjejum por muitos anos, mas agora não sentia enjôo com o sangue, o cheiro e as vísceras. Degustava da gordura do café da manhã como se fosse o próprio animal. A barba suja devia guardar algumas refeições passadas.
A cadeira de balanço reclamava mais alto com seu peso. Porém mantinha o mesmo ritmo de quando balançava com Irene. Às vezes, quando o sol batia mais fraco e o reflexo das janelas ofuscava seus olhos, Nelson podia jurar que a risada dela ecoava no quintal.
No dia que a perdeu, os portões estavam abertos.
Hoje também.
Em noventa e sete, a coisa matou uma meia dúzia de cabras no sítio vizinho. Havia escapado numa noite de lua cheia. Os jornais do interior estamparam manchetes em vermelho, e alguns diziam que o "chupa cabra" — das lendas porto-riquenhas — vinha do espaço. Um bando de malucos de imaginação fértil e títulos sem significado.
Nelson já sabia, muito antes do nome pegar, quem era a criatura. Precisou redobrar o cuidado por um tempo até que a poeira baixasse.
Na época, a mulher ainda morava com ele.
Irene gostava de ficar no parreiral durante o entardecer. Arrancava as uvas maduras e assistia o sol se pôr. Chegava na varanda de dentes roxos e olhos tristes. Quanto tempo não a via sorrir...
— Aquilo nunca vai ser uma família — ela disse uma vez, a garrafa de vinho nas últimas. — Isso... isso é um erro, Nelson.
Mas o velho não queria ser pai de novo. Queria ter a quem cuidar. Alguém que não iria embora. Amar significa perder. E ele não aguentaria isso outra vez.
Quando foi embora, Irene não gritou ou discutiu. Apenas disse:
— Você tá mais preso a isso do que a nós.
Com a mão sobre o ventre.
Com um nós que nunca existiu.
O silêncio imperou no vinhedo desde então.
Um cachorro morto apareceu na cerca da frente. Depois, um bezerro do vizinho. As cabras eram suas favoritas, talvez os órgãos fossem mais saborosos pela dieta rica. Tinham poucas cabras na região, então a coisa ia mais longe em sua procura.
Nelson enterrava os corpos sem falar nada. Não avisava ninguém. Não por interesse em esconder, mas porque não havia quem o quisesse ouvir.
— Tu não és um monstro... — disse para coisa em um dos velhos dias. Quando conversava, a bebida estava sempre na mão. — É só o que sobrou de um...
A resposta foi um silêncio cheio de entendimento. Sempre foi silêncio.
Às vezes, chamava a coisa de "menino". Tinha dias que precisava ignorar seus grunhidos para se manter são. Era um experimento, até onde sabia. Um acidente de laboratório. Um fardo.
Não encostava na coisa, a pele cinza de cão-canguru lhe dava gastura nos calos dos dedos. Apenas se encaravam. Profundos olhos negros o refletiam como um espelho antigo. Distorcido, familiar. Se reconheciam um no outro. Isso bastava para os seres solitários.
Algumas vezes, o velho Nelson ia para o porão com um rádio velho. Deixava na porta, sentado nas escadas. Não era exatamente conversa, mas servia para ocupar o ar. Nessas noites, deixava a coisa passear. Depois do incidente em 97, tinha mais consciência em como agir.
Nelson nunca esperava por ele. Acreditava que iria embora como os outros. Mas a coisa voltava. Sempre.
Então ele nunca deixou de lhe tocar músicas. Até no velho violão. A criatura parecia até gostar.
— Tô ficando velho, ein... — notou no dia que não conseguiu levantar de segunda ou terceira. — Tu também.
A besta arranhava o chão com as unhas longas.
Odiava as uvas.
Nelson jogava cobertores no chão para a coisa se aquecer, às vezes um osso maior para roer. Toda vez que fazia a velha caminhonete roncar, trazia vísceras e até gordas galinhas para agradar.
Naquele dia, depois de fazer tudo no vinhedo pela metade, se sentou no porão depois de muito tempo sem visitar. Tinha aberto a garrafa do melhor vinho. O primeiro que fez sozinho, lá pela maturidade da juventude. Agora, estava mais para podre do que envelhecido.
— Tô cansado, filho — disse, esfregando a cabeça de cabelos ralos. — Mas eu te cuido, tá? Só não vai me dar mais trabalho.
As noites vinham mais frias com o passar dos anos — Nelson não acreditava nessa história de aquecimento global. O inferno era gelado. Com a lua prata, vinham sonhos cada vez mais difíceis.
O pior deles era com Irene. Começava como qualquer dia, como se ela estivesse de volta em sua rotina. Sentada na varanda balançando, descascando laranjas para o café. A casca se enrolava inteira, como uma espiral de tempo que ele nunca conseguia alcançar.
— Você devia ter deixado ir, Neri — ela estava cheia de lágrimas. Odiava ver ela chorar. — Aquilo não é gente.
Mas "aquilo" era o único que ficou.
Quando veio outra vez o dia, o sol nasceu doente. Cinza e raso. Nelson sentiu a dor apertar o peito enquanto colhia as uvas. Sua carcaça estava mais difícil de arrastar.
Ele foi até o alçapão sem balde. Sequer apertava as correntes nos últimos dias, estavam frouxas, os cadeados enferrujados. Ouviu os cliques metálicos como cada batimento cardíaco se apagando.
Nheeeeec.
A criatura estava em pé, a postura canguru com as pernas traseiras grossas e saltantes. Se aproximou devagar, como se sentisse que havia algo errado.
O velho Nelson balançou a cabeça, desviou o olhar.
— Vá.
A coisa olhou para as escadas. O rádio estava esquecido entre os degraus mais altos. Nelson deu um tapinha na cabeça lisa da criatura, a mão gelada. Ela abaixou a cabeça, aceitando o carinho.
O chão tremeu quando saiu. Pulou pela porta dos fundos, achando as cercas caídas e sem manutenção há dias.
Nenhum ataque. Nenhuma despedida.
Nelson voltou para a varanda. Seu café estava frio e sem laranjas. O vento passeava sem pressa, carregando o cheiro das parreiras mortas. Todo o vinhedo estava morrendo. As plantas, os móveis, as lembranças.
Sentou-se na cadeira de balanço, essa lhe cumprimentou com um rangido. Testemunha de amor perdido, sorrisos e lágrimas. Cenário de sonhos e paraíso. Lembrava de tudo. O rádio tocava uma música antiga, entre samba e bolero, cheia do calor dos anos oitenta.
Ficou ali. O olhar perdido por tudo que restou com as pernas cansadas demais para mais um dia. Balançou para frente e para trás. Devagar. Uma, duas vezes. E então ficou quieto.
Ao longe, o berro de uma cabra embalou o sono.
Como se a morte fosse só mais uma criatura solta, voltando para casa.
Imprevistos acontecem e eu acabei atrasando esses dois contos, mas estão aqui.
Eu nunca servi como um bom exemplo de disciplina, mas espero que seja uma inspiração de persistência. É a vida real, uma maratona de escrita é desafiadora e muito difícil, então espero que esse deslize sirva como um alívio do medo.
Medo de quem quer participar e não sabe se vai completar, se vai fazer tudo certo. O importante é tentar e fazer da forma que conseguir.
Espero que gostem.
Amanhã (hoje, dia 18) vou postar o conto do Lago Ness e do Yeti juntos também.